Foi estranho te reconhecer como desconhecido hoje, tão desconhecido como sempre foi. Aquele olhar surpreso sem conteúdo, aquela parede de vidro.
Não que houvesse algo que pudéssemos dizer, mas o silêncio. Foi o silêncio que me incomodou, sim, foi ele. De onde não vieram as palavras vãs que sempre acabávamos dizendo. Uma imaturidade presa nos confins da lembrança.
Estranho não terem vindo, as lembranças. Sim, estavam ausentes como aqueles olhos. Desconfiei da lembrança de um momento. Uma fotografia em pelo atemporal. Era o único indício que tive da memória.
Teriam eles me reconhecido? Teriam eles se espantado com o reconhecimento? Em que momento se deixaram passar a borracha as retinas? Qual tinha sido o ponto de corte? Tive dúvidas.
Por que me incomodava tanto aquele protoreencontro?
O que havia sobrado de toda a poesia e toda a destruição da poesia - de toda a antropofagia de nós? De toda a antropologia de nós? De toda a angiologia de nós? Daquela outra vida. Uma vida distante, em que se misturaram o mercador árabe e a colombina. Em que se misturaram nossas pernas meio sem caminho, meio sem sentido, mas contínuas.
Tinha sobrado, enfim?
Quis lembrar, exatamente, como tudo tinha passado, mas salpicavam-me as lembranças.
Que tinha sido feito da memória? Lembrava-me daqueles dentes brancos, grandes, robustos. E de quando se organizavam em sorriso. Lembrava-me de passar os dedos entre os cabelos desgrenhados por horas e horas a fio. E daqueles pelos. Aquele pequeno gesto para fora da camisa. Pelos que antes se exibiam para mim. Aos poucos, comecei a montar uma cena.
Por que me esforçava tanto? Se o fim já não havia chegado, não uma, mas duas vezes! Dois pontos finais que eu mesma coloquei. O primeiro - cria eu - pacificamente; o segundo, com digressões em fúria do peito alcoolizado. Tinha esboçado no cosmo estradas e estradas para que nunca mais nos achássemos. Que uma vez perdidos, nos perdêssemos.
E justo no dia em que tinha, quase sem querer, resgatado você nos pensamentos. Quando olhava para a sua toca e lembrava de como tudo tinha começado a terminar ali.
Esbarrei em você e em nossa solidão.
Você sentado com aqueles olhos que se espantavam, mas não me viam. Eu querendo ter mais uma vez com aqueles olhos. E fiquei atada numa falta de respiração sem sentido.
Penso: será que pensa?
Será que essa lacuna também te obscureceu os sentidos?
Será que agora devemos ter medo, e real medo, de atravessar a rua, de passear com o cachorro, de ir ao mercado, de nos acharmos?
Será que nos encontraríamos?
Depois de tantos anos, nos reconheceríamos?
Em que não nos reconhecêssemos, nos apaixonaríamos?
Perguntas que ecoam sem resposta em mim.
Ociosidades momentâneas
sábado, 9 de abril de 2011
quinta-feira, 7 de abril de 2011
"Meu orgulho me deixou cansado/Meu egoísmo me deixou cansado/Minha vaidade me deixou cansado".
Tentei, então, o existir compartilhado. Tentei deixar que me dissessem o quê. Mas um grande fiasco, por fim. Não havia nada nos outros que pudesse de fato compreender, tampouco eles se deixavam umedecer por mim. Era eu na minha inabilidade com o contrato social, nos deslizesmeiogafes da fala espontânea.
Falei por mim e pelos outros. Falei demais. Nunca ninguém se deveria permitir falar demais.
As palavras são inúteis.
O que te leem são os braços, os antebraços, as pernas, o fígado. Nunca o cérebro. Menos ainda o coração. Um conjunto de sintomas da comunicação imperfeita. Te entendem como querem, a bem da verdade. Nada do que se diga faz sentido algum no outro.
Então por que dizer?
Por que não adotar a comunicação minimalista, deixar que leiam minhas sobrancelhas, arqueadas, ou mesmo ou a vírgula entre elas, meus dedos nervosos que se estalam, a palma da mão que desliza sobre os cabelos em movimentos lentos, meus olhos avermelhados, transbordantes, o coçar da ponta do nariz?
Que me entendam como quiserem.
Cansei de tentar escolher as mais precisas palavras, de estudar a estilística do meu discurso. Cansei de tentar amarrar os sentidos na escrita, esqueci como é que se escreve bonito. Cansei de tentar alcançar a compreensão. Da minha boca não se ouvem mais odes nem epopéias. Vou em busca da caverna.
"Só falo por mim. Ninguém vai me dizer o que sentir."
Tentei, então, o existir compartilhado. Tentei deixar que me dissessem o quê. Mas um grande fiasco, por fim. Não havia nada nos outros que pudesse de fato compreender, tampouco eles se deixavam umedecer por mim. Era eu na minha inabilidade com o contrato social, nos deslizesmeiogafes da fala espontânea.
Falei por mim e pelos outros. Falei demais. Nunca ninguém se deveria permitir falar demais.
As palavras são inúteis.
O que te leem são os braços, os antebraços, as pernas, o fígado. Nunca o cérebro. Menos ainda o coração. Um conjunto de sintomas da comunicação imperfeita. Te entendem como querem, a bem da verdade. Nada do que se diga faz sentido algum no outro.
Então por que dizer?
Por que não adotar a comunicação minimalista, deixar que leiam minhas sobrancelhas, arqueadas, ou mesmo ou a vírgula entre elas, meus dedos nervosos que se estalam, a palma da mão que desliza sobre os cabelos em movimentos lentos, meus olhos avermelhados, transbordantes, o coçar da ponta do nariz?
Que me entendam como quiserem.
Cansei de tentar escolher as mais precisas palavras, de estudar a estilística do meu discurso. Cansei de tentar amarrar os sentidos na escrita, esqueci como é que se escreve bonito. Cansei de tentar alcançar a compreensão. Da minha boca não se ouvem mais odes nem epopéias. Vou em busca da caverna.
"Só falo por mim. Ninguém vai me dizer o que sentir."
segunda-feira, 28 de março de 2011
da nova literatura
Cansada de reler a prosa de antigamente, quis culpar os livros lidos e, sobretudo, os livros não lidos pela escrita desinspirada que viera com os anos. Quis culpar o sistema, a rotina, os números do dia a dia, a correria. Nada que me abrisse os olhos para admitir que a literatura se havia descolado de mim, placenta, abortiva. Todos aqueles embriões de ótimos textos eutanázios na décima sexta linha. O descaso todo com a continuidade. A preguiça mental da chave de ouro, o espaço excessivo à pausa. Hesitante. Na palavra e na não palavra. Via hesitação em todos os meus dizeres e em todos os meus silêncios. Quis culpar a in-utilidade. Como se meus textos inúteis discutissem entre si sem consenso sobre sua insignificância.
Racionalizando um pouco menos, agressivamente um pouco menos, cheguei a ver beleza naquelas palavras. A semente da raiva se aquecia, de fato, entre as raízes daquelas palavras. Aquelas raízes que secaram na salinidade do solo. Tentei em vão resgatar meus antigos motes, quem sabe, sobre os quais pudesse versar ainda uma vez. Mas eram todos homens mortos, sonhos mortos, ideias mortas que não tinham lugar em mim.
A verdade é que a literatura tinha assistido a minha morte prosaica. Com a cumplicidade embaçada de catarata. Tinha-me encontrado na ordinareidade dos pensamentos que não merecem ser escritos.
Adoeci.
As palavras fracas, uma sangria desesperada para que sobrevivessem ainda. Qual o quê! De nada me serviam as antigas rimas e os enjambements de que me orgulhava. Desde que perdi a forma deixando que as linhas corressem sem pausa. Até que as perdi de vista. Cavalos chucros, levaram-me por bosques densos em que não me achava. E reinaram assim no meu reino selvagem por anos a fio.
Foi quando mesmo lendas encantadas deixaram de ser contadas. Foi quando não vi motivo para contar nada. Foi quando descobrir que nada havia a se contar.
Então, de leve, piscaram-me os olhos de pestana miúda. Cocei-os de leve, como me alcançasse o sono. Pensei mesmo sentir formar-se uma lágrima. Aquele calor úmido que se sente por cima das retinas. É quando se pisca. E permaneci ainda piscando por milissegundos a fio, para que secasse a lágrima. Não queria regar a semente do texto. Queria deixar aquela inspiração ali fechada, fecunda, até que brotasse, naturalmente, em flor.
Foi quando me deixei descansar de olhos fechados e tive esperança.
Racionalizando um pouco menos, agressivamente um pouco menos, cheguei a ver beleza naquelas palavras. A semente da raiva se aquecia, de fato, entre as raízes daquelas palavras. Aquelas raízes que secaram na salinidade do solo. Tentei em vão resgatar meus antigos motes, quem sabe, sobre os quais pudesse versar ainda uma vez. Mas eram todos homens mortos, sonhos mortos, ideias mortas que não tinham lugar em mim.
A verdade é que a literatura tinha assistido a minha morte prosaica. Com a cumplicidade embaçada de catarata. Tinha-me encontrado na ordinareidade dos pensamentos que não merecem ser escritos.
Adoeci.
As palavras fracas, uma sangria desesperada para que sobrevivessem ainda. Qual o quê! De nada me serviam as antigas rimas e os enjambements de que me orgulhava. Desde que perdi a forma deixando que as linhas corressem sem pausa. Até que as perdi de vista. Cavalos chucros, levaram-me por bosques densos em que não me achava. E reinaram assim no meu reino selvagem por anos a fio.
Foi quando mesmo lendas encantadas deixaram de ser contadas. Foi quando não vi motivo para contar nada. Foi quando descobrir que nada havia a se contar.
Então, de leve, piscaram-me os olhos de pestana miúda. Cocei-os de leve, como me alcançasse o sono. Pensei mesmo sentir formar-se uma lágrima. Aquele calor úmido que se sente por cima das retinas. É quando se pisca. E permaneci ainda piscando por milissegundos a fio, para que secasse a lágrima. Não queria regar a semente do texto. Queria deixar aquela inspiração ali fechada, fecunda, até que brotasse, naturalmente, em flor.
Foi quando me deixei descansar de olhos fechados e tive esperança.
Das minhas incertezas
Você nunca me prometeu nada.
Na verdade, o que fiz foi meticulosamente preencher seus silêncios. Desenhar cercas em miragens com seus balbúcios ininteligíveis. Interpretar seus pequenos gestos, seus sorrisos e seus olhares de indagação.
Você nunca mentiu pra mim.
Na verdade, o que fiz foi incessantemente preencher seus detalhes. Incorporar informações às paisagens pintadas por suas omissões. Relevar seus pequenos sinais, seus desvios e seus lapsos de ingratidão.
Não que eu tenha tido intenção de me enganar. É que eu achava o mistério um impossível teatro. Cria que não poderia haver nada que se escondesse por fim. Pensava num prazo de validade para o desconhecido.
No entanto, por todas as vezes em que me aproximei mais de você, em que me afastei mais de você, e quando achei que era possível, você sumiu. Aparecia sempre um outro desconexo, que exigia de mim um processo cognitivo refeito desde o início.
Na verdade, o que fiz foi te amar gratuitamente.
Coloquei meu coração sobre a roleta, apostando na supremacia do vermelho sobre o negro. Quando finalmente chegasse a hora do luto, já teria apostado o suficiente no pulso do sangue. O coração, cansado de bater, satisfeito estaria mesmo ao fim do sentimento desfeito. Uma aposta.
Uma aposta é um tiro no pé.
Eu poderia, atirando de olhos fechados, errar o pé.
Poderia traumatizá-lo para sempre, encerrando minha possibilidade de caminhar.
Poderia feri-lo levemente, deixar uma cicatriz como memória, e correr em direção ao mar.
Mas eu jamais imaginaria que apostar em você seria atirar no pé com a roleta da pistola vazia de balas. E na minha ignorância das balas, brincar de apontar para a cabeça, para o coração, até que, de súbito, um tiro inesperado me acertaria. Tenho a impressão de que você percorreu meu corpo violentamente. De que você deixou um rastro da cabeça aos pés. E de que sua marca ficará em mim sem escolha.
Ocasionalmente, penso em tirar minhas fichas da mesa, mas não posso. Há em mim uma compulsão pelo desfecho. Quando penso que seria melhor não ver o que há de possível nisso, me impressiono, e sinto meu peito apertar, com uma angústia profunda que me prende ao feltro verde. Lembro-me da minha vontade de te conhecer. E de te espreitar, até que seja uma janela aberta. Por fim.
domingo, 27 de março de 2011
Nesses últimos anos, conheci inúmeras pessoas que estavam viajando há anos, ou que tinham deixado sua casa e vivido em vários países, ou que, simplesmente, não se lembravam de quando tinham morado em algum lugar mais do que alguns meses. Sempre quis alcançar esse desprendimento dos viajantes. Uma espécie de alma cigana que se contorcia em mim a cada história que contavam.
Mas como simplesmente abandonar toda essa vida confortável de desconforto previsível, de instabilidade estável, do conhecido? Sempre tive medo de morrer de fome, de precisar voltar e não ter para onde, de me perder nessa busca por mim. Será que saberia viver do imprevisto?
Às vezes, acredito que menosprezo minha capacidade de ser. Que me apego ao que já sou, por mais decepcionante que seja, pelo medo de ser outra. Como se constrói um ser outro?
Durante um mês em minha vida viajei sem limites. Não contei dinheiro, não contei horas de sono ou refeições feitas. Não contei quarteirões até chegar em casa. Não contei dias, não contei amigos nem amantes. Não contei mentiras. Nesses 30 dias toquei cada ruína que pude, dormi em cada banco de praça que quis, dedilhei a superfície das fontes. Subi nas mesas e nelas dancei, com quantas cervejas consegui beber sem delas cair. Chorei com cada sonho que perdi e com cada despedida que tive. Me apaixonei muitas e muitas vezes pelo mesmo lugar. Falei aleatoriamente em línguas que domino com pessoas que não conhecia. E troquei o horário do café da manhã.
Por 30 dias da minha vida achei que tivesse conhecido a liberdade. Pensei em ligar para o escritório e dizer que não mais voltaria, que fizessem o que quisessem com meu porta-lápis. Em aprender artesanato, em dar aulas de samba. Pensei em viver como o motorista do ônibus do aeroporto, que tinha a minha idade e morava com a familia na banlieue de Paris; ele, cujo emprego havia permitido uma espécie de desrotina e o suficiente para viajar de quando em quando. Tive inveja daquelas horas da madrugada em que ele me conhecia. Será que eu poderia dirigir um ônibus e falar com uma estranha que mal fala a minha língua por horas e horas a fio? Será que, em outra vida, pilotaria afoita uma bicicleta ao som dos sininhos de Amsterdam? Trabalharia no Burger King de Londres? Venderia pinóquios pelas pracinhas de Florença?
Um dia, um francês conhecido anunciou que partia para Bora Bora. Iria trabalhar no paraíso. E tirava fotos lindas, e comia peixes frescos, e não reclamava um dia. Eu tudo assistia dos Windows pequenos do escritório. E pensava mais uma vez em quando meu dia chegaria.
Um dia, cansei da minha casa. Cansei das pessoas que moravam na minha casa. Cansei dos ônibus que passavam por minha casa. Cansei da minha casa que não era minha. A minha casa que não era escolha minha. Abri mão do espaço que tinha e reduzi minhas necessidades ao mínimo. Convenci-me a ocupar uma prateleira de uma casa que não era minha. Encaixotei o excesso de coisas minhas que não eram minhas. E comecei a contar os minutos para deixar uma vida que não era minha. Pensei em todos os países que ainda não conhecia. E de toda a rotina que não era minha. E de toda a expectativa que não era minha. Lembrei de cada cidade que não conhecia. E antecipei cada lembrança minha, donde subia um gosto suave de descoberta. Antecipei cada dificuldade que passaria nessa vida que seria minha. Cada alegria minha. Cada ansiedade minha. Cada incerteza minha. E tive mais vontade de correr para ela. Mais vontade de que desconhecessem meu paradeiro. Mais vontade de falar várias línguas. Mais vontade de me casar com um estrangeiro com quem teria diversas lacunas comunicativas. E de lhe dar um filho. E de crescer o filho com a certeza de que precisava ficar.
Foi quando entendi que o mundo deve girar, girar, até que haja um motivo forte o bastante para que pare.
Que devemos remar, remar, até que a onda nos canse.
Que preciso arriscar até que a sorte me deixe.
E viver um dia de cada vez, intensamente, antes que meus dias se acabem.
Mas como simplesmente abandonar toda essa vida confortável de desconforto previsível, de instabilidade estável, do conhecido? Sempre tive medo de morrer de fome, de precisar voltar e não ter para onde, de me perder nessa busca por mim. Será que saberia viver do imprevisto?
Às vezes, acredito que menosprezo minha capacidade de ser. Que me apego ao que já sou, por mais decepcionante que seja, pelo medo de ser outra. Como se constrói um ser outro?
Durante um mês em minha vida viajei sem limites. Não contei dinheiro, não contei horas de sono ou refeições feitas. Não contei quarteirões até chegar em casa. Não contei dias, não contei amigos nem amantes. Não contei mentiras. Nesses 30 dias toquei cada ruína que pude, dormi em cada banco de praça que quis, dedilhei a superfície das fontes. Subi nas mesas e nelas dancei, com quantas cervejas consegui beber sem delas cair. Chorei com cada sonho que perdi e com cada despedida que tive. Me apaixonei muitas e muitas vezes pelo mesmo lugar. Falei aleatoriamente em línguas que domino com pessoas que não conhecia. E troquei o horário do café da manhã.
Por 30 dias da minha vida achei que tivesse conhecido a liberdade. Pensei em ligar para o escritório e dizer que não mais voltaria, que fizessem o que quisessem com meu porta-lápis. Em aprender artesanato, em dar aulas de samba. Pensei em viver como o motorista do ônibus do aeroporto, que tinha a minha idade e morava com a familia na banlieue de Paris; ele, cujo emprego havia permitido uma espécie de desrotina e o suficiente para viajar de quando em quando. Tive inveja daquelas horas da madrugada em que ele me conhecia. Será que eu poderia dirigir um ônibus e falar com uma estranha que mal fala a minha língua por horas e horas a fio? Será que, em outra vida, pilotaria afoita uma bicicleta ao som dos sininhos de Amsterdam? Trabalharia no Burger King de Londres? Venderia pinóquios pelas pracinhas de Florença?
Um dia, um francês conhecido anunciou que partia para Bora Bora. Iria trabalhar no paraíso. E tirava fotos lindas, e comia peixes frescos, e não reclamava um dia. Eu tudo assistia dos Windows pequenos do escritório. E pensava mais uma vez em quando meu dia chegaria.
Um dia, cansei da minha casa. Cansei das pessoas que moravam na minha casa. Cansei dos ônibus que passavam por minha casa. Cansei da minha casa que não era minha. A minha casa que não era escolha minha. Abri mão do espaço que tinha e reduzi minhas necessidades ao mínimo. Convenci-me a ocupar uma prateleira de uma casa que não era minha. Encaixotei o excesso de coisas minhas que não eram minhas. E comecei a contar os minutos para deixar uma vida que não era minha. Pensei em todos os países que ainda não conhecia. E de toda a rotina que não era minha. E de toda a expectativa que não era minha. Lembrei de cada cidade que não conhecia. E antecipei cada lembrança minha, donde subia um gosto suave de descoberta. Antecipei cada dificuldade que passaria nessa vida que seria minha. Cada alegria minha. Cada ansiedade minha. Cada incerteza minha. E tive mais vontade de correr para ela. Mais vontade de que desconhecessem meu paradeiro. Mais vontade de falar várias línguas. Mais vontade de me casar com um estrangeiro com quem teria diversas lacunas comunicativas. E de lhe dar um filho. E de crescer o filho com a certeza de que precisava ficar.
Foi quando entendi que o mundo deve girar, girar, até que haja um motivo forte o bastante para que pare.
Que devemos remar, remar, até que a onda nos canse.
Que preciso arriscar até que a sorte me deixe.
E viver um dia de cada vez, intensamente, antes que meus dias se acabem.
domingo, 5 de dezembro de 2010
Se eu entrasse em colapso, alguém jamais desconfiaria? Se me perdesse em tantas conjecturas e nunca mais encontrasse saída do meu próprio pensamento? É um risco que se corre?
Não consigo precisar quanto tempo gasto dentro de mim. Revisito o mundo a cada instante, rearranjando memórias e criações espontâneas num cenário diverso. Comparo pessoas e seus comportamentos, disparo gatilhos mentais que decidem por mim. Nunca tive consciência de estar decidindo quando tomei as decisões mais importantes.
Lembro que, quando era criança, tinha uma fixação específica por um pensamentozinho: o que tem quando acaba o universo? Sendo infinito, o que havia antes? Era tudo cinza?
Sempre imaginei o pré-universo como um cinza sem borda. O universo foi uma aquarela para combater todo aquele cinza. Nasceram estrelas que pudessem morrer para que houvesse brilho. Para que o brilho ofuscasse os astronautas. Para que os astronautas acreditassem no infinito. Eu quis ser astronauta. Disseram que não poderia ser astronauta porque os astronautas não podiam ser pessoas altas. Acho que mentiram para mim. Mas eu nunca deixei de acreditar no infinito.
O infinito deve ser uma das coisas mais bonitas de se existir. Porque, afinal de contas, o fim é sempre o mais triste. Como o chocolate no fim. Como o amor no fim. Tenho certo receio da expressão 'o fim do sofrimento'. Tanto como finalidade quanto como término. Poderia o sofrimento ter qualquer um dos dois?
Exatamente em qual momento inventaram a palavra para o sofrimento? Acho uma boa palavra. Sofrimento parece uma palavra em si sôfrega. No entanto, o sofrimento não me parece tão natural como sua palavra. Como será que se inventou o sofrimento? Como funciona isso? O sofrimento é infinito porque não sei ver quando começa e quando termina. Como o universo. O universo foi o sofrimento de uma estrela. O sofrimento foi muito além da estrela, e alcançou o infinito. Por isso não posso ter em mim sofrimento: é maior do que eu. O sofrimento é uma externalidade com a qual lido de tempos em tempos. Mas seria mentira dizer que o tenho em mim.
É como dizer que se tem alguém. Não há pessoa que caiba em outra. Nem a pessoa que existe, a imagem que todos fazem de um conjunto de corpo e atitude. Não existem pessoas em si. E não se pode colocar nada naquilo que não existe. Tampouco atribuir propriedade a um proprietário inexistente. Por isso as pessoas não são umas das outras. Porque não existem.
Já conheci várias pessoas e essas pessoas nunca foram conhecidas por outras. Quando me contavam, sempre tive certeza de que haviam conhecido outras pessoas. Por mais que eu tente explicar a pessoa que conheço, ela nada tem a ver com a pessoa do outro conhecida. Fico pensando às vezes quantas pessoas conhecem em mim. Será que são muito diferentes? Será que são todas verossímeis? Será que se eu conhecesse uma pessoa em mim saberia que sou eu?
Por que esse tipo de pensamento me ocorre antes de dormir? Não me lembro de ter pensado sobre isso antes. Estranho pensar que se pense sobre algo mais de uma vez. Não faz sentido. Tendo pensado a primeira vez, a coisa já está resolvida: qualquer pensar que se insista será sobre algo já diferente.
Eu não saberia dizer por que pensamos tanto. É um esforço absurdo para parar. Eu nunca consegui. Tentei já por várias vezes, mas sempre encontrava no fundo o pensamento sobre o não pensar. Sendo assim, desisti. E agora estou presa nos meus próprios pensamentos. Só consigo fugir deles quando durmo. Tentemos.
Não consigo precisar quanto tempo gasto dentro de mim. Revisito o mundo a cada instante, rearranjando memórias e criações espontâneas num cenário diverso. Comparo pessoas e seus comportamentos, disparo gatilhos mentais que decidem por mim. Nunca tive consciência de estar decidindo quando tomei as decisões mais importantes.
Lembro que, quando era criança, tinha uma fixação específica por um pensamentozinho: o que tem quando acaba o universo? Sendo infinito, o que havia antes? Era tudo cinza?
Sempre imaginei o pré-universo como um cinza sem borda. O universo foi uma aquarela para combater todo aquele cinza. Nasceram estrelas que pudessem morrer para que houvesse brilho. Para que o brilho ofuscasse os astronautas. Para que os astronautas acreditassem no infinito. Eu quis ser astronauta. Disseram que não poderia ser astronauta porque os astronautas não podiam ser pessoas altas. Acho que mentiram para mim. Mas eu nunca deixei de acreditar no infinito.
O infinito deve ser uma das coisas mais bonitas de se existir. Porque, afinal de contas, o fim é sempre o mais triste. Como o chocolate no fim. Como o amor no fim. Tenho certo receio da expressão 'o fim do sofrimento'. Tanto como finalidade quanto como término. Poderia o sofrimento ter qualquer um dos dois?
Exatamente em qual momento inventaram a palavra para o sofrimento? Acho uma boa palavra. Sofrimento parece uma palavra em si sôfrega. No entanto, o sofrimento não me parece tão natural como sua palavra. Como será que se inventou o sofrimento? Como funciona isso? O sofrimento é infinito porque não sei ver quando começa e quando termina. Como o universo. O universo foi o sofrimento de uma estrela. O sofrimento foi muito além da estrela, e alcançou o infinito. Por isso não posso ter em mim sofrimento: é maior do que eu. O sofrimento é uma externalidade com a qual lido de tempos em tempos. Mas seria mentira dizer que o tenho em mim.
É como dizer que se tem alguém. Não há pessoa que caiba em outra. Nem a pessoa que existe, a imagem que todos fazem de um conjunto de corpo e atitude. Não existem pessoas em si. E não se pode colocar nada naquilo que não existe. Tampouco atribuir propriedade a um proprietário inexistente. Por isso as pessoas não são umas das outras. Porque não existem.
Já conheci várias pessoas e essas pessoas nunca foram conhecidas por outras. Quando me contavam, sempre tive certeza de que haviam conhecido outras pessoas. Por mais que eu tente explicar a pessoa que conheço, ela nada tem a ver com a pessoa do outro conhecida. Fico pensando às vezes quantas pessoas conhecem em mim. Será que são muito diferentes? Será que são todas verossímeis? Será que se eu conhecesse uma pessoa em mim saberia que sou eu?
Por que esse tipo de pensamento me ocorre antes de dormir? Não me lembro de ter pensado sobre isso antes. Estranho pensar que se pense sobre algo mais de uma vez. Não faz sentido. Tendo pensado a primeira vez, a coisa já está resolvida: qualquer pensar que se insista será sobre algo já diferente.
Eu não saberia dizer por que pensamos tanto. É um esforço absurdo para parar. Eu nunca consegui. Tentei já por várias vezes, mas sempre encontrava no fundo o pensamento sobre o não pensar. Sendo assim, desisti. E agora estou presa nos meus próprios pensamentos. Só consigo fugir deles quando durmo. Tentemos.
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