Foi estranho te reconhecer como desconhecido hoje, tão desconhecido como sempre foi. Aquele olhar surpreso sem conteúdo, aquela parede de vidro.
Não que houvesse algo que pudéssemos dizer, mas o silêncio. Foi o silêncio que me incomodou, sim, foi ele. De onde não vieram as palavras vãs que sempre acabávamos dizendo. Uma imaturidade presa nos confins da lembrança.
Estranho não terem vindo, as lembranças. Sim, estavam ausentes como aqueles olhos. Desconfiei da lembrança de um momento. Uma fotografia em pelo atemporal. Era o único indício que tive da memória.
Teriam eles me reconhecido? Teriam eles se espantado com o reconhecimento? Em que momento se deixaram passar a borracha as retinas? Qual tinha sido o ponto de corte? Tive dúvidas.
Por que me incomodava tanto aquele protoreencontro?
O que havia sobrado de toda a poesia e toda a destruição da poesia - de toda a antropofagia de nós? De toda a antropologia de nós? De toda a angiologia de nós? Daquela outra vida. Uma vida distante, em que se misturaram o mercador árabe e a colombina. Em que se misturaram nossas pernas meio sem caminho, meio sem sentido, mas contínuas.
Tinha sobrado, enfim?
Quis lembrar, exatamente, como tudo tinha passado, mas salpicavam-me as lembranças.
Que tinha sido feito da memória? Lembrava-me daqueles dentes brancos, grandes, robustos. E de quando se organizavam em sorriso. Lembrava-me de passar os dedos entre os cabelos desgrenhados por horas e horas a fio. E daqueles pelos. Aquele pequeno gesto para fora da camisa. Pelos que antes se exibiam para mim. Aos poucos, comecei a montar uma cena.
Por que me esforçava tanto? Se o fim já não havia chegado, não uma, mas duas vezes! Dois pontos finais que eu mesma coloquei. O primeiro - cria eu - pacificamente; o segundo, com digressões em fúria do peito alcoolizado. Tinha esboçado no cosmo estradas e estradas para que nunca mais nos achássemos. Que uma vez perdidos, nos perdêssemos.
E justo no dia em que tinha, quase sem querer, resgatado você nos pensamentos. Quando olhava para a sua toca e lembrava de como tudo tinha começado a terminar ali.
Esbarrei em você e em nossa solidão.
Você sentado com aqueles olhos que se espantavam, mas não me viam. Eu querendo ter mais uma vez com aqueles olhos. E fiquei atada numa falta de respiração sem sentido.
Penso: será que pensa?
Será que essa lacuna também te obscureceu os sentidos?
Será que agora devemos ter medo, e real medo, de atravessar a rua, de passear com o cachorro, de ir ao mercado, de nos acharmos?
Será que nos encontraríamos?
Depois de tantos anos, nos reconheceríamos?
Em que não nos reconhecêssemos, nos apaixonaríamos?
Perguntas que ecoam sem resposta em mim.
Perguntas que ecoam sem resposta em mim também.
ResponderExcluirLindo texto. Não fico feliz por ter me identificado tanto com ele, mas é lindo sim, como são todos os textos tristes.
me encontrei aqui desde a primeira até a última frase.
ResponderExcluirbelíssimo texto...