domingo, 27 de março de 2011

Nesses últimos anos, conheci inúmeras pessoas que estavam viajando há anos, ou que tinham deixado sua casa e vivido em vários países, ou que, simplesmente, não se lembravam de quando tinham morado em algum lugar mais do que alguns meses. Sempre quis alcançar esse desprendimento dos viajantes. Uma espécie de alma cigana que se contorcia em mim a cada história que contavam.

Mas como simplesmente abandonar toda essa vida confortável de desconforto previsível, de instabilidade estável, do conhecido? Sempre tive medo de morrer de fome, de precisar voltar e não ter para onde, de me perder nessa busca por mim. Será que saberia viver do imprevisto?

Às vezes, acredito que menosprezo minha capacidade de ser. Que me apego ao que já sou, por mais decepcionante que seja, pelo medo de ser outra. Como se constrói um ser outro?

Durante um mês em minha vida viajei sem limites. Não contei dinheiro, não contei horas de sono ou refeições feitas. Não contei quarteirões até chegar em casa. Não contei dias, não contei amigos nem amantes. Não contei mentiras. Nesses 30 dias toquei cada ruína que pude, dormi em cada banco de praça que quis, dedilhei a superfície das fontes. Subi nas mesas e nelas dancei, com quantas cervejas consegui beber sem delas cair. Chorei com cada sonho que perdi e com cada despedida que tive. Me apaixonei muitas e muitas vezes pelo mesmo lugar. Falei aleatoriamente em línguas que domino com pessoas que não conhecia. E troquei o horário do café da manhã.

Por 30 dias da minha vida achei que tivesse conhecido a liberdade. Pensei em ligar para o escritório e dizer que não mais voltaria, que fizessem o que quisessem com meu porta-lápis. Em aprender artesanato, em dar aulas de samba. Pensei em viver como o motorista do ônibus do aeroporto, que tinha a minha idade e morava com a familia na banlieue de Paris; ele, cujo emprego havia permitido uma espécie de desrotina e o suficiente para viajar de quando em quando. Tive inveja daquelas horas da madrugada em que ele me conhecia. Será que eu poderia dirigir um ônibus e falar com uma estranha que mal fala a minha língua por horas e horas a fio? Será que, em outra vida, pilotaria afoita uma bicicleta ao som dos sininhos de Amsterdam? Trabalharia no Burger King de Londres? Venderia pinóquios pelas pracinhas de Florença?

Um dia, um francês conhecido anunciou que partia para Bora Bora. Iria trabalhar no paraíso. E tirava fotos lindas, e comia peixes frescos, e não reclamava um dia. Eu tudo assistia dos Windows pequenos do escritório. E pensava mais uma vez em quando meu dia chegaria.

Um dia, cansei da minha casa. Cansei das pessoas que moravam na minha casa. Cansei dos ônibus que passavam por minha casa. Cansei da minha casa que não era minha. A minha casa que não era escolha minha. Abri mão do espaço que tinha e reduzi minhas necessidades ao mínimo. Convenci-me a ocupar uma prateleira de uma casa que não era minha. Encaixotei o excesso de coisas minhas que não eram minhas. E comecei a contar os minutos para deixar uma vida que não era minha. Pensei em todos os países que ainda não conhecia. E de toda a rotina que não era minha. E de toda a expectativa que não era minha. Lembrei de cada cidade que não conhecia. E antecipei cada lembrança minha, donde subia um gosto suave de descoberta. Antecipei cada dificuldade que passaria nessa vida que seria minha. Cada alegria minha. Cada ansiedade minha. Cada incerteza minha. E tive mais vontade de correr para ela. Mais vontade de que desconhecessem meu paradeiro. Mais vontade de falar várias línguas. Mais vontade de me casar com um estrangeiro com quem teria diversas lacunas comunicativas. E de lhe dar um filho. E de crescer o filho com a certeza de que precisava ficar.

Foi quando entendi que o mundo deve girar, girar, até que haja um motivo forte o bastante para que pare.

Que devemos remar, remar, até que a onda nos canse.

Que preciso arriscar até que a sorte me deixe.

E viver um dia de cada vez, intensamente, antes que meus dias se acabem.

6 comentários:

  1. Não se preocupe, você fez tudo isso na sua curta vida. E esse é o consolo para quem fica. Muitos bjs e descanse em paz.

    Um amigo...

    ResponderExcluir
  2. Taty,

    Com certeza você viveu intensamente todos os seus dias. Não quero que descanse em paz, quero que viva onde quer que esteja e continue viva, linda, intensa para sempre. Assim me lembrarei de você. Como pode morrer a Pessoa mais viva que conheci?
    não, não pode!

    Claro, ficamos tristes, com saudade, mas prefiro a ideia de que você se desprendeu da única barreira que te afastava da liberdade veradeira - o corpo.

    Um dia, quem sabe, nós vemos por ái...
    Beijos

    ResponderExcluir
  3. Penso sempre em você, como você era alegre, feliz e justa. E como foi embora cedo....Fiquei triste de terem tirado o seu Facebook, era uma forma de ver suas últimas alegrias, encontros...Enfim....Beijos

    ResponderExcluir
  4. Cada vez que leio esse texto, é um conforto em saber que você viveu bem e feliz! Saudades de você prima...
    Não da para me esquecer de você.
    Parabéns pelo seu dia, hoje os anjos festejam no céu! SAUDADES ETERNAS.
    Janni

    ResponderExcluir
  5. Esse texto é o mais lindo que já li. Sempre recorro a ele quando a vontade de ser uma viajante do mundo se contorce dentro de mim. Onde você estiver, obrigada por esse lindo texto.

    ResponderExcluir
  6. Para a família da Taty, gostaria de dizer que ela foi incrível. Linda, inteligente, perspicaz, divertida. Sua vida foi importante para muitas pessoas. Penso sempre nela, lembrando de sua alegria. Maria Clara Pontes

    ResponderExcluir